BI (uma pintura de Filipe Rocha da Silva):
Grande Pintura Mural 2016
Não é só a retoma, por sobre toda a imensidão da sua maior tela à data, de milhares de milhares de figurinhas antropomórficas perfiladas de topo, uma a uma: é uma colossal e derradeira (?) retoma de retomas, neste grande mural de desempenho arquitectónico de Rocha da Silva, das dezenas e dezenas de telas precedentes onde centenas de milhares de similares rabiscos se retomam de uns para os outros em cada obra e de obra para obra em cada repetição do mesmo gesto de um único avatar infinitamente reiterado como unidade-distinta repetida que contém, sozinha, a totalidade aberta da obra plástica deste pintor.
Numa vertigem oriental, deixamos de saber se são as telas que repetem figurinhas, se é a figurinha que repete telas.
Desta vertigem extraímos, porém, um algoritmo: a unidade de consideração, nesta pintura, não é nem o indivíduo elementar nem a multidão, conjunto finito, mas também não é a repetição – é a repetição da repetição. Uma tela não é nunca, por conseguinte, apenas ela própria: ela contém, na sua, a repetição do que nas telas anteriores ou posteriores pertence à função de repetição que engendra cada uma e todas as demais. Talvez cada tela não repita outras (e o ‘verdadeiro indivíduo’, tão buscado quanto extraviado nesta proliferação galáctica de minúsculos corpos gigantescos, não se encontre na figura de cada humano, mas na figura de cada tela): mas repete a respectiva repetição (e volta, pois, a fazer de ‘cada tela’, fractalmente, o que esta faz, nela, de ‘cada figura’ individuada: o universal abstracto ‘indivíduo’, comum a todos aqueles que resultam igualados pela sua própria diferenciação numérica separativa: e talvez toda a miragem e ideologia do indivíduo – que vem a ser exactamente o mesmo que a multidão – se enuncie aqui, por meio de uma hipotipose directamente pictórica). Quando olhamos, então, uma pintura de RdS, não observamos uma repetição de figurinhas (cuja contagem coincidisse com os limites de campo), mas assistimos a um estágio da repetitividade de si própria dessa repetição, que atravessa (e constitui) este campo dado e se multiplica ilimitadamente sobre inúmeros outros.
Quer dizer: por muito grande que seja desta vez o campo pictórico, ele não esgota nem contém as figurinhas, cuja proliferação não é finita nem infinita, mas ilimitada, e o mesmo se diga porventura desses outros campos pictóricos, como Leibniz exprimia dos tanques e dos peixes, dos viveiros e dos vivos: numa ontologia do infinitesimal, não há maior número de peixes que de tanques (de figurinhas que de telas), porque os campos interiores em cada figurinha estariam por sua vez regorgitantes de outras tantas figurinhas que os atravessam (como a obra Pintores (2004) melhor talvez que qualquer outra, esboça: a figurinha é ao mesmo tempo o seu próprio campo ou fundo, e o acto autotético de se pintar a si própria é igualmente o de se converter no próprio fundo ao qual está a pintar, com rolos de pintores de paredes que são também de pintura, numa estonteante e verídica diferenciação da tinta-matéria por si mesma enquanto tinta-acto aplicando-se, quer dizer, determinando-se no seio da sua própria homogeneidade substancial. Esta relação, escheriana, barroca, e não cartesiana, é a que mais distingue Rocha da Silva de Dubuffet).
Que a dimensão pantagruélica desta tela não logra abarcar e conter as figurinhas, se manifesta na exigência que a contra-escala das mesmas coloca à visão da obra, de tal maneira que esta se subdivide na verdade em várias relações/planos de visão incompossíveis, das quais constitui a articulação mestra. E, de facto, não é a extensão, mas o funcionamento que esta permite, aquilo que define este grande mural festivo, álacre e cromático de Rocha da Silva.
A tela funciona, então, como um dispositivo de articulação em/de pelo menos quatro relações de visão que se objectivam em outros tantos planos plásticos, a visibilidade ou organização de cada uma dessas estratificações ditando a invisibilidade das restantes:
(I) Numa primeira correlação entre pontos/ângulos de observação e estratificações na obra, tem lugar o avistamento sinóptico da extensão objectiva da tela apresenta simultaneamente o (I.i) resultado ambíguo de um vasto fresco abstracto esboçando uma sugestividade figurativa que remete, no irrenunciável memorial histórico-pictórico sempre convocado por RdS como substrato para o contraponto temático que construtura as suas telas, tanto para as ambições parietais e decorativas de uma Danse apolínea matissiana sem dançarinas, como para os desdobramentos duchampianos de um Nu descendant un escalier, um Jeune homme triste dans un train ou um Le roi et la reine entourés de nus vites; e o (I.ii) resultado irónico do concurso de um falso pontilhismo de figuras para a constituição das referidas manchas de cor que voltam, ao seu nível, a articular essa tensão ambígua do figurativo e do abstracto – tensão que porá em seguida o problema do indivíduo abstracto e da multidão concreta, ou seja, o problema do abstraccionismo da própria ‘figura’, a reabrir assim noutra e mais acutilante dimensão ontológica a questão plástica do desaparecimento da Figura como epítome da realidade);
(II) Distribuída ao longo de um percurso espectatorial a distância média/aproximada, abre-se uma variedade de cortes perspectivadores de zonas da tela diversamente reconfiguradas em função do ponto e distância de observação e do ângulo apontado sobre a superfície, compondo com o carácter aleatório quer das figurinhas quer dos campos coloridos que elas vão conglutinando, quer dos padrões cromáticos que vão sendo apostos; é também a esta distância média que emergem (como elementos acrescentados em fase tardia da factura) as linhas dificilmente enxergáveis, mas intencionais, de membra disjecta fantasmáticos a atravessarem longitudinalmente a tela numa reminiscência do Courbet do L’origine du monde e do Duchamp de Étant donnés. Este contraponto de um figurativo remanescente traçado suplementarmente questiona o cromatismo abstracto feito de uma acumulação de figurinhas, elas mesmas simplificadas por sua vez até à sua micro-abstracção, que recobre a superfície – mas o seu carácter fantasmático apaga ao mesmo tempo o seu teor de referencial último do sentido, e a tela sucumbe a um ruído pululante que só não submerge por completo a mensagem porque a é ele próprio.
(III) Se, em suma, a ondulação abstracta resulta de um microfigurativo de efeito pontilhista e, vice-versa, todo o esboço de figurativo (o Fantasma, as figurinhas no seu eixo vertical de colocação) se deslaça até à abstracção de si próprio; não resta menos que, à observação muito aproximada, esse Todo abstracto que surge, primeiro, como mural cromático, se revela agora construído – no outro extremo da escala de grandeza – por miríades de microfiguras, por sua vez situadas algures entre o signo pictográfico e o desenho mimético, entre uma configuração voluntarista da postura toda cabeça e ombros marchando num entêtement de marabunta (entre a configuração antrópica, entomológica, alfabética, articulatória-esquelética) e o esquematismo da sua abreviatura abstracta. Dir-se-ia termos encontrado no individual atómico a estrutura irremontável de construção do próprio espaço do universo (ou das bandas cromáticas da sua pintura). Mas também acabámos de dizer que esse ‘individuado’ último hesita entre o figurativo e o esquemático-abstracto – manifestação pictural das indecisões e problematicidade de uma teoria do indivíduo e de uma teoria da multidão, que atravessam toda a obra de Rocha da Silva.
(IV) Se regredirmos à escala micro (abaixo da visão natural do espectador) mediante uma lente óptica de aumentação, encontraremos ainda uma nova oscilação entre a precisão teimosa de um traço figurativo (mais pictográfico que mimético, como vimos) e o afundamento confuso nas potências picturais da mancha.
É aqui de referir a regra do processo do autor quando aborda esta escala ínfima. O paradoxo incessante (a qualquer escala) é que Rocha da Silva ressalva a manualidade contra a máquina e, aparentemente, o indivíduo contra a série, ao manufacturar ainda precisamente a imagem por excelência da produção mecanizada em série, quando elabora individualmente cada microfigura individuada e quando repete à mão o principium individuationis (independentemente de o resultado o converter numa paródia da rigorosa indistinção dos assim distintos). Ora, a regra de que falávamos consiste na conservação da constância de um factor – a mão – contra a variação não-concordante dos outros dois, pincel e lupa. Com efeito, se esta última serve para controlar até ao limite da microscopia os honestos traços laboriosos de uma figura detalhada (que todavia à vista desarmada aparece como um pequeno borrão pontual não-formado, na época em que a figurinha é a morte da figura), o recurso aos pincéis de precisão não acompanha necessariamente esse esforço óptico e manual, e por vezes um instrumento deliberadamente demasiado grosso vem sabotar o dispêndio investido num tal trabalho de relojoaria ciclópica. Esforço, imperfeição e aleatoriedade concorrem igualmente para a pintura, contra a alta definição ocular: nesta contradição, reaparece o paradoxo de um carácter figurativo minucioso até à abstracção, que se destina a fazer ressaltar a contradição intrínseca do indivíduo numérico contemporâneo, membro igualitário e separado das multidões demográficas como das séries virtuais nas redes digitais.
Verifica-se, assim, que o princípio de execução é fiel à regra da relação figura/abstracção.
A lupa permite, assim, o controle da transição figurativo/abstracto na armação gráfica da figurinha. Permite assistir à sua perda: não é um instrumento de ganho, mas o óculo de uma consciência da dissipação. Porque é dessa precisa transição indeterminada, e do seu controle pictórico repetido como um mantra perpétuo por um monge oriental, que se trata sempre – e podemos observá-la, mesmo sem lente, também nas zonas situadas do lado esquerdo da tela que desempenham (involuntariamente) um papel de chave de leitura dessa mesma transição: nessa região de vacilação e de indistinção entre figuração e grafismo abstracto.
Essa mesma disposição entre os dois pólos, o da figura aumentada e o do seu esquema embrionário diminuído, é a que patentemente organiza a leitura da tela como um exercício de transição gradual de grandezas, sem que porém se possa dizer com segurança que o maior é o figurativo e, o mais pequeno, o abstracto (já vimos como um efeito de lente o pode contrariar). E, sem dúvida, não existe padrão algum da Figura, a ‘figurinha’ é precisamente a sua sabotagem originária, ou a figuração que destrói a figuração. Com isso, a no man’s land em que a toda a pintura de Rocha da Silva sempre nos deixa é a de um estado de permanente relação entre figurativo e abstracto, mas na ausência dos pólos-padrão dessa variação intermédia sem fim, que lhe desse descanso – ‘o’ Figurativo e ‘o’ Abstracto. E é assim que, na zona perigosa e infra-humana da esquerda da tela, o pincel grosso é controlado pela micro-lupa para manter a constante de Relação (sob constância de Mão) até onde ela for possível, desde o Ponto primordial.
Nada melhor do que um segundo sistema de organização gráfica, para além do pictórico – o sistema ocidental da escrita – para satisfazer esse carácter decorrencial que é tanto o dos marchadores como o da marcha intermédia da própria pintura entre os dois quase-pólos referidos, balizados entre microfigurinhas e figurinhas ampliadas. Os três eixos de leitura – de abertura do texto e das texturas, embora as relações de escala figura/fundo variem ao acaso – são, então, o eixo longitudinal (o quadro ‘abre’ para a direita, como na escrita linear), o eixo vertical (o quadro ‘abre’ para baixo, como na escrita paginal) e o eixo oblíquo (o quadro ‘abre’ através do volume, como na escrita livresca). O par escrita/leitura secunda o par pintura/visão, e esclarece também que a decifração que nos é proposta é directamente a de um sentido inscrito discursivamente numa superfície: ler, desde grande altura, o indivíduo multitudinário na sua azáfama abstracta, silenciosa, sem rosto, enquanto produto principal do mundo e, muito mais raramente, da pintura.
A exegese deste tema ocuparia uma abordagem ao conjunto da obra do pintor. Para nos fixarmos na presente, começaríamos por verificar que a abstractização endógena da figura é mais fácil de obter quando colocada no eixo vertical (onde ela sofre uma compressão imediata e uma esquematização rapidamente irreconhecível) do que quando no eixo frontal ou lateral. É preferível dizer ‘colocada’, a ‘olhada’: na verdade, se por um lado a função de abstracção decorreria empiricamente da distância de observação e seria potenciada por um ângulo particularmente opaco (aprontando, digamos, a imagem de uma miniatura esmagada), e se esse ponto de perspectiva significaria desde logo a soberania de um ‘olho de pássaro’ citadino sobre a proliferação irrelevante de insectos indeterminados rastejando oitenta andares abaixo pela rua, não é porém o ponto de vista que define a essência do indivíduo multitudinário, mas, pelo contrário, a colocação própria deste último que sugere que ponto de vista lhe seria mais adequado. É o próprio indivíduo que de per si se apresenta espalmado sobre o solo, miniatural, enxameante, marchante. Não é a distância o operador de abstracção (seria contingente e exterior), há um operador plástico intrínseco de abstracção que trabalha directamente a transição à abstracção como relação da figura a si própria, figura, submetida a um estudo da sua simplificação esquematizadora (sendo, a miniaturização, um traço dessa simplificação, e não o contrário).
Curiosamente, não é em geral na vertical que vemos a verticalidade da figura humana: na presença quotidiana como na representação clássica, não acompanhamos o fazer-se vertical, de baixo para cima, dessa figura. Talvez a lição deste imenso ‘Visto de cima’ (perspectiva várias vezes usada por RdS), a sua única lição sobre o indivíduo, resida então apenas no seguinte:
O indivíduo começa por não ser ainda ninguém, ou alguém, mas um individuado formal pertencente ao anonimato. Se pensarmos nas folhas goethianas das árvores, todas inquestionavelmente de uma dada árvore mas nenhuma igual a nenhuma, não nos seria difícil ver como folhas espalmadas estes ‘wallpapermen’. Ora, é aí que o paradoxo do Indivíduo se estabelece: cada Folha Espalmada, vemo-lo, afirma-se agora ao estabelecer o seu assentamento opinioso, ao pôr-se. As duas pernas são um acto anatómico autoposicional. Uma folha, é posta, mas, um indivíduo, põe-se, (a)firma-se. Mais: sob perspectiva picada, ganha corpo, ganha volume, espessura. Há uma espécie de opiniosidade – a de uma pura posição sem ubicação. Assim, o indivíduo é o que se individua anonimamente no anonimato, o que se circunscreve e se define como individuado abstracto: os corpos separam-se e distinguem-se, mas os pés põem-no como separado e distinto, firmam essa distinção, são eles o verdadeiro cogito reflexo cartesiano do homo erectus. Ergue-se, e caminha. Numa trajectória própria, o indivíduo articula-se e exprime-se, o abstracto configura-se. Vista de cima, cada figurinha arremete, testuda, de cabeça baixa. É verdade que todas o fazem, e não há um só rosto que permita identificar cada ‘folha’, apenas distinta mas não distinguida: mas a individuação é tanto mais nítida quanto mais se recorta no homogéneo: é o individuado puro, que não se diferencia por absolutamente nada de seu, próprio, ‘individual’, e que assim manifesta a que pontos o indivíduo é o abstracto do humano, não menos do que aquela que parecia ser a sua oposta – a multidão. Mas é aí que um tal indivíduo se revela de uma potência distintiva brutal: sem nada de seu, de diferente, ele posiciona-se como o que se delimita enquanto unidade recortada absolutamente irredutível à massa de todos os seus indistinguíveis. O Indivíduo é a irredutibilidade de um indistinguível a todos os outros, pace tal indistinguibilidade. As folhas não têm pés (como as árvores não possuem locomoção), e distinguem-se sem se individuarem, sem se porem.
Antes ainda da mão, que pinta, e da cabeça, que (se) pensa, os pés instauram e exprimem uma relação reflexiva ao mundo. E talvez todo o fascínio da figurinha de Rocha da Silva resida nesse movimento pelo qual ela se põe de pé, ela se levanta ao mundo desde o chão, e tem que o fazer inteiramente desde o princípio, de cada uma das vezes. O gesto concreto de pintar cada uma, irredutível à sua repetição e insubstituível por qualquer outro, é uma incalculável homenagem de pintor à ontologia da individuação: nos seres humanos, o indivíduo não nasce de outros, nasce por completo e de alto a baixo desde si – e é esse o seu rosto.
José Manuel Martins
Docente da Universidade de Évora e
investigador no Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa